Após incidentes recorrentes de violência contra refugiados e migrantes mantidos em dois centros de detenção na cidade líbia de Trípoli, a organização médica internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) anunciou nesta quarta-feira (23) que se sente obrigada a temporariamente suspender suas atividades nos centros de detenção de Mabani e Abu Salim.
“Esta não é uma decisão fácil de tomar, pois significa que não estaremos presentes em centros de detenção onde sabemos que as pessoas sofrem diariamente”, disse a coordenadora-geral de MSF na Líbia, Beatrice Lau. “No entanto, o padrão persistente de incidentes violentos e sérios danos a refugiados e migrantes, bem como o risco para a segurança de nossa equipe, atingiu um nível que não somos mais capazes de aceitar. Até que a violência pare e as condições melhorem, MSF não pode mais fornecer assistência médica e humanitária nessas instalações. ”
Incidentes violentos aumentam continuamente
Desde fevereiro deste ano, incidentes de maus-tratos, abuso físico e violência contra as pessoas mantidas nesses centros de detenção têm aumentado continuamente. No espaço de apenas uma semana, as equipes de MSF testemunharam em primeira mão e receberam relatos de pelo menos três incidentes violentos, que resultaram em graves danos físicos e psicológicos.
Durante uma visita no dia 17 de junho ao centro de detenção de “Coleta e Devolução” de Mabani, onde pelo menos duas mil pessoas estão detidas em celas superlotadas, equipes de MSF testemunharam atos de violência perpetrados pelos guardas, incluindo espancamento indiscriminado de pessoas que tentaram deixar suas celas para serem consultadas por nossos médicos.
A equipe de MSF recebeu relatos de um aumento das tensões na noite anterior que resultou em uma violência em massa, deixando tanto migrantes e refugiados quanto guardas feridos. MSF tratou 19 pacientes que tiveram ferimentos causados por espancamento, incluindo fraturas, cortes, escoriações e traumas contundentes. Uma criança desacompanhada ficou incapaz de andar depois de sofrer graves ferimentos nos tornozelos. Outros falaram de abuso físico e verbal por parte dos guardas.
Acesso negado ao centro de detenção
No início da mesma semana, no dia 13 de junho, armas automáticas foram disparadas contra pessoas detidas no centro de detenção de Abu Salim, causando várias vítimas, de acordo com relatórios recebidos por equipes de MSF. Por sete dias após o incidente, nossas equipes tiveram o acesso negado ao centro de detenção, levantando preocupações sobre as repercussões da falta de tratamento para as pessoas com ferimentos potencialmente graves e para os que se encontram em estado crítico.
O crescimento da violência desde o início de 2021 acompanha um aumento significativo e simultâneo do número de refugiados, migrantes e solicitantes de asilo interceptados no mar pela guarda costeira líbia, financiada pela EU. As pessoas retornaram à Líbia à força e foram trancados em centros de detenção. No dia 19 de junho, mais de 14 mil foram interceptadas e devolvidas à Líbia, superando o número total de retornos forçados em todo o ano de 2020.
Isso provocou uma grave superlotação e a deterioração das condições já desesperadoras no interior dos centros de detenção. A maioria deles não tem ventilação e luz natural; alguns estão tão superlotados que quatro pessoas compartilham o espaço de um metro quadrado, forçando as pessoas a se revezarem para se deitar e dormir. As pessoas não têm acesso consistente à água potável e instalações de higiene.
Escalada da violência e condições desumanas
Além disso, os migrantes e refugiados recebem uma alimentação insuficiente, com apenas uma ou duas pequenas refeições por dia, geralmente um pedaço de pão com queijo ou um prato de macarrão para compartilhar entre muitos. Os médicos de MSF observaram que, com a falta de comida, por vezes, as pessoas usam seus medicamentos para controlar a fome. A falta de alimentos nutritivos suficientes deixou algumas mulheres impossibilitadas de produzir leite materno para seus bebês. Uma mulher disse às equipes de MSF que estava tão desesperada para alimentar seu bebê de cinco dias, que tentou dar sua porção de comida sólida para que ele não morresse de fome.
Em tais condições desumanas, as tensões frequentemente resultam em escaladas de violência entre os guardas e as pessoas detidas arbitrariamente.
MSF pede o fim da violência e a melhoria das condições para refugiados e migrantes presos dentro dos centros de detenção de Mabani e Abu Salim. MSF também reitera seu apelo ao fim da prática de longa data de detenção arbitrária na Líbia e pela evacuação imediata de refugiados, solicitantes de asilo e migrantes expostos a riscos fatais no país, incluindo os que estão em centros de detenção.
“Nossos colegas viram e ouviram falar de homens, mulheres e crianças vulneráveis, já mantidos em condições desesperadoras, sendo submetidos a mais abusos e a situações que colocam suas vidas em risco”, disse Ellen van der Velden, coordenadora de operações de MSF. “Nenhuma outra pessoa interceptada no mar pela guarda costeira da Líbia, financiada pela UE, deve ser forçada a voltar para o país e para os centros de detenção. A violência nos centros de detenção deve acabar e todos aqueles que estão presos nessas condições desumanas devem ser libertados. ”