No dia 27 de fevereiro, uma ampla mobilização nacional foi lançada para recuperar as coberturas vacinais, que estão em queda desde 2015. Os esforços para que a população busque a imunização incluíram o fato de o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter recebido a vacina bivalente contra a covid-19 diante das câmeras. Porém, enquanto governo e veículos de imprensa destacavam a necessidade de aumentar a proteção contra as doenças imunopreveníveis, esforço contrário era empreendido nas plataformas digitais, com a divulgação de mentiras, conteúdos descontextualizados e teorias da conspiração que associavam de forma fraudulenta as vacinas até mesmo ao extermínio da população mundial.
Esse movimento negacionista foi destrinchado em um relatório do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NetLab/UFRJ). Os pesquisadores mostram que houve um pico de conteúdo antivacinista nas plataformas digitais no dia em que Movimento Nacional pela Vacinação foi lançado. Somente no Twitter, foram catalogadas mais de 50 mil publicações desse teor.
Entre 26 de fevereiro e 21 de março, mais de 320 mil tuítes, 20 mil publicações no Facebook e 6 mil no Instagram com conteúdo antivacinista foram identificados pelo laboratório, que também registrou milhares de mensagens em grupos monitorados no WhatsApp e no Telegram e mais de 200 vídeos no TikTok. Enquanto pesquisadores, comunicadores e autoridades empenhavam-se em convencer a população da segurança e eficácia das vacinas, essas mensagens bombardeavam usuários de redes sociais com o oposto.
O NetLab conseguiu mapear um grupo de 36 mil perfis no Twitter que retuitaram mais de 100 mil publicações com conteúdo antivacina após o lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação. Retuitar significa encaminhar para os seguidores publicação de outro perfil. Tal articulação acabou sendo mais intensa que a dos 41 mil perfis que fizeram 79 mil retuítes a favor da vacinação.
Ação criminosa
O movimento negacionista não passou despercebido pelo Ministério da Saúde. A ministra Nísia Trindade reconheceu que há uma campanha antivacinista buscando minar os esforços da sociedade para elevar a cobertura vacinal. “Temos enfrentado uma forte campanha, desde 27 de fevereiro, de fake news [notícias falsas] envolvendo a vacina bivalente. Isso é extremamente sério, e eu tenho destacado que não se trata de desinformação, se trata de ação criminosa”, declarou a ministra.
Coordenadora de pesquisa do NetLab, a cientista da informação Débora Salles explica que, em diversos momentos, a pauta política do país é um gatilho para campanhas de desinformação, e o movimento pela vacinação foi um episódio emblemático. “Quando o presidente Lula se vacina, a extrema direita ativa uma campanha muito intensa em que várias narrativas são acionadas em diferentes plataformas, tentando trazer dúvidas sobre o quão seguras as vacinas são”, afirma. “Percebe-se que campanha se aproveita de um evento, mas as narrativas já circulavam antes e se intensificaram para criar um pico de discussão e trazer a atenção para aquela pauta, disputando a narrativa com a campanha oficial”, diz Débora.
Desinformação permanente
Segundo a pesquisadora, os conteúdos que já estavam prontos e apenas foram intensificados fazem parte de um fluxo permanente de desinformação que circula nas plataformas digitais do Brasil e do mundo há anos, provocando desconfiança em relação a instituições, deturpações no debate público, amplificação de discurso de ódio e radicalização política. Débora define a desinformação como uma campanha sistemática cujo objetivo é produzir desconfiança nas pessoas e diz que o fluxo constante de mensagens deforma o debate público no longo prazo.
“Muita propaganda e muita informação problemática passam por informação neutra, orgânica e verdadeira, e isso vai alterando a percepção das pessoas e a qualidade do debate público. E, quando se perde qualidade no debate público, isso leva a mudanças nas políticas públicas. Com o tempo, inclusive médicos passam a duvidar de evidências científicas”, enfatiza.
De acordo com Débora, esse caldeirão de desinformação depende de um núcleo que direciona campanhas, produz conteúdo e orquestra reações, mas também precisa de capilaridade para ser disseminado. “A desinformação bem-sucedida se aproveita de uma infraestrutura que vimos surgir no Brasil com a extrema direita, que foi montando uma estrutura que é tanto centralizada e organizada quanto capilarizada, e consegue chegar a várias pessoas de diferentes nichos e de diferentes formas”, afirma a pesquisadora.
Ela afirma que a extrema direita é a corrente política que mais aposta na desinformação. “Nossos dados mostram que as campanhas de desinformação de outras posições ideológicas são exceção, mas é importante reforçar que, se não se atualizarem as regras do jogo, a tendência é que todas as vertentes queiram aproveitar essas estratégias de manipulação.”
O que a pesquisadora chama de infraestrutura é uma rede de perfis que atua em diversas plataformas de forma coordenada, republicando, comentando e participando de transmissões ao vivo, programas, podcasts, e também em portais e canais do YouTube, além de aplicativos de mensagens. Essa coordenação, inclusive, reduz a eficácia de derrubar publicações em uma plataforma específica, porque um tuíte, por exemplo, pode ser printado (impresso, copiado) e continuar circulando no Instagram ou no Telegram, mesmo depois de o original ser apagado. “A infraestrutura é uma atuação multiplataforma lucrativa e autossuficiente, que se retroalimenta e se republica. Nenhuma narrativa emplaca com um ou dois influenciadores em só uma rede social.”
A coordenadora do NetLab relata que o monitoramento de tal infraestrutura é um trabalho cada vez mais desafiador porque as plataformas digitais têm reduzido o acesso dos pesquisadores aos dados. É um desafio que ocorre na vertente política, com a defesa de uma regulamentação que garanta acesso aos dados, e também na vertente metodológica, porque é preciso construir formas de pesquisar o que está disponível neste momento.
“O primeiro passo é ter mais transparência para diagnosticar o problema e pensar em políticas públicas e regulamentação baseada em evidências. Atualmente os dados são escassos e incompletos. Cada empresa decide o que quer disponibilizar, e isso coloca a sociedade à mercê dos interesses corporativos dessas plataformas”.
Poluir o debate
Além da construção de narrativas falsas, a desinformação serve para desviar o foco do debate público e ocupar os espaços de discussão, ressalta o professor Victor Piaia, da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas.
“Hoje, as fake news fazem parte do repertório político das redes sociais. No fundo, atores políticos e militantes usam notícias que não são verdadeiras tanto para atingir alguém ou criar uma imagem, como para poluir o debate. Esse uso não necessariamente tem o objetivo de convencer, mas de evitar que outros assuntos sejam mais relevantes.”
O sociólogo lembra o curioso caso da notícia falsa da eleição de 2018 segundo a qual haveria distribuição de mamadeiras eróticas para crianças. Ele explica que as fake news mais inverossímeis se inserem em um contexto maior de bombardeio sobre um tema e contribuem mais para a criação de uma visão de mundo do que para o convencimento pontual sobre esses casos específicos.
“Esse é o caso mais lembrado de fake news sem pé, nem cabeça, mas que foi capaz de gerar um dano enorme. Existiam, naquela época, muitas publicações relacionadas a uma suposta sexualização infantil. As pessoas que estavam nesses grupos recebiam sem parar conteúdos que acusavam artistas e pensavam no ambiente escolar como depravado moralmente. A mamadeira pode ser um exemplo esdrúxulo, mas, quando se percebe que a pessoa, a todo momento, é tocada por esses conteúdos, ela pode não acreditar na mamadeira, mas isso não significa que não acredite no todo. A gente foca muito em um caso que pode ser esdrúxulo, mas a questão é a visão de mundo que está sendo construída cotidianamente.”
Entre as plataformas digitais usadas para disseminar desinformação, o WhatsApp destaca-se por ser a mais usada pelos brasileiros, diz o professor. Além disso, Piaia explica que a vida cotidiana das pessoas incorporou o uso dessa plataforma e, quando o conteúdo falso chega ao usuário, chega muitas vezes por meio de contatos pessoais e até familiares, aproveitando-se de redes de confiança.
“Não é um espaço público, é um espaço privado de informação. O conteúdo chega por meio de um parente, um conhecido, um amigo, alguém que você tem em grande estima. Essa informação tem uma capacidade grande de envolver as pessoas, seja para acreditar ou discordar”, detalha o pesquisador.
Diante dessa relevância, pesquisadores pensam estratégias para captar os movimentos na plataforma, mas o acesso é difícil por se tratar de aplicativo de mensagens privadas. O máximo que é possível para o monitoramento é se inscrever em grupos públicos e linhas de transmissão que são usadas para desinformar, diz Piaia.
“Não importa em quantos grupos você entre. Você pode entrar em 5 mil grupos ou em 40 mil grupos, e ainda não vai saber o que isso representa no todo. A gente tem falta de informação e clareza do total desse universo de mensagens, porque a plataforma não informa isso. A gente entende que é relevante – há todos os sinais de que é relevante – e consegue construir este quebra-cabeças, mas é difícil ter certeza e medir com precisão o que acontece ali dentro, até para pensar medidas que combatam o problema.”
Apesar de todas as plataformas adotarem estratégias para diminuir o alcance da desinformação, o sociólogo considera que as ações ainda são insuficientes diante dos impactos sociais causados pelas fake news que circulam dentro delas. “Se pesquisadores independentes não podem acessar e tentar entender aquele ecossistema e aquele universo para buscar problemas e soluções, ficamos reféns de uma avaliação interna das plataformas. Quando se observa uma plataforma fechando dados para pesquisa, ela está, de certa forma, contribuindo para a manutenção de todos esses problemas.”
Lucro e afeto
O professor de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) João Cezar de Castro Rocha cita o escritor Guimarães Rosa para explicar por que ainda é tão difícil encontrar uma solução para enfrentar a desinformação: “Estamos no meio do redemoinho”. Assim como os meios digitais de pagamento e transações financeiras mudaram a economia e exigiram regulação e modernização dos diversos órgãos de controle, João Cezar argumenta que as plataformas digitais mudaram de forma irreversível e profunda o debate político e as formas de interação social, só que sem ser acompanhadas de regulações capazes de garantir limites.
O pesquisador monitora as redes e discute os efeitos discursivos e sociais desse fluxo permanente de desinformação. João Cezar vê como caminho central a desmonetização desse conteúdo por parte das plataformas, mas considera impossível cessar completamente essa torrente, que é lucrativa.
“Precisamos começar a compreender que fake news é uma indústria. É produção em massa e é fonte de monetização. Para as plataformas, conteúdo radicalizador, agressivo e virulento vende mais que conteúdo didático ou sereno”, critica o professor. Ele destaca que produtores de fake news enriquecem e empreendem apostando na desinformação. “Fake news não é apenas ideologia, é uma forma de empreendedorismo. As fake news têm o aspecto ideológico, o impacto político, a produção do ódio, a exclusão do outro. Tudo isso está na essência das fake news. Mas um ponto negligenciado é que as fake news são uma fábrica de dinheiro, porque aumentam o engajamento, as visualizações, os likes, e isso se reverte em monetização.”
O pesquisador também defende a necessidade de deixar de encarar as fake news apenas como simples mentiras e explica que um elemento muito característico desse discurso é partir de um dado verdadeiro para construir um argumento falso. Esse dado muitas vezes é superdimensionado, pinçado de uma situação excepcional e tomado como universal, transformando-se em um risco iminente em toda parte.
Exemplos dessa estratégia são os eventos adversos graves da vacinação, registrados em proporções raríssimas, porém explorados pelos antivacinistas. O Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, por exemplo, observou apenas 11 casos de miocardite entre as mais de 8 milhões de doses da vacina da Pfizer aplicadas em crianças com idade entre 5 e 11 anos, no início da vacinação contra a covid-19 nessa faixa etária. Nenhuma dessas crianças morreu e todas se recuperaram. Mesmo assim, a miocardite é frequentemente citada como um perigo da vacina em mensagens antivacinistas, que ignoram que a própria covid-19 causa o mesmo problema de saúde com uma frequência 16 vezes maior.
“Uma notícia falsa não é uma mentira, é uma máquina narrativa cuja finalidade é produzir um afeto”, afirma João Cezar. “É uma produção de afeto com a retórica do ódio, para a monetização do medo. A extrema direita monetiza o pânico que ela mesma produz. Cria a demanda e oferece o produto. É um modelo de negócio perfeito”, afirma.
A produção de afeto e o fluxo permanente de desinformação, com o passar dos anos, construíram o que o pesquisador chama de dissonância cognitiva coletiva — nome complexo que descreve um comportamento que muitos brasileiros testemunham em suas relações pessoais. Refugiando-se em conteúdos extremistas nas plataformas digitais, os consumidores fiéis de fake news têm suas crenças reforçadas a todo momento e ficam cada vez mais refratários ao contraditório e a fatos que invalidam suas ideias. O efeito disso é o compartilhamento de uma realidade paralela, completamente interpretada com a lente da desinformação.
“A dissonância cognitiva é própria da condição humana. Nós evitamos informações que contrariam nossas crenças e procuramos informações que reforçam. Mas, com a revolução digital, a dissonância cognitiva não é mais individual. O que está acontecendo é mais grave. Essa disjunção que leva a uma realidade paralela deixou de ser de foro íntimo, porque hoje você está compartilhando aquela crença com milhões de pessoas. Hoje, no mundo inteiro, centenas de milhões de pessoas acreditam que um consórcio das farmacêuticas se reuniu para produzir o coronavírus, vender máscara e vacina”, alerta o pesquisador.
Essa crença coletiva se dá por meio de uma “dieta” rigorosa de fake news, explica João Cezar, já que a tecnologia hoje permite estar conectado 24 horas por dia, recebendo conteúdo de diversos grupos em diferentes plataformas.
“Eu tenho casos coletados de pessoas que participam de 15 grupos desse tipo no WhatsApp. Isso é uma dieta rigorosa de desinformação. Isso produz o delírio que vimos no Brasil. Em nenhum outro lugar do mundo a dissonância cognitiva levou até 40 mil pessoas durante dois meses para as portas de quartéis”.